Podia ser cena de um filme de drama, com um final surpreendente, que está fazendo sucesso na Netflix durante a quarentena. Mas é só o relato de um pai em uma publicação no facebook. Miguel (nome fictício para preservar a identidade da criança) é autista leve, escreveu o pai no post, e muitas vezes ele chora ao repetir a frase várias e várias vezes para si mesmo.
A publicação nas redes sociais comoveu muita gente e em minutos já havia centenas de comentários com mensagens de pessoas solidárias com a criança, algumas dezenas de mães denunciando que os próprios filhos também repetiam frases negativas — sou burro, sou chato, não sou suficiente, ninguém se importa comigo, sou ruim, mereço morrer... — e, afinal, muita gente questionando: “quem falou isso para ele?”
As pessoas estavam certas em questionar isso. Afinal, um pensamento desse, repetido oralmente com tanta insistência, não brotaria espontaneamente na cabeça de uma criança.
Na psicologia chamamos de autoconceito o conjunto de crenças e ideias que uma pessoa tem de si mesma. Crenças negativas sobre nós mesmos (ex. eu não consigo, ninguém gosta de mim) produzem emoções negativas e comportamentos prejudiciais (ex. evitar desafios, isolamento). O conjunto de crenças negativas mais as consequências emocionais e comportamentais produzidas por elas é o que chamamos de baixa autoestima (deixamos de ter estima e apreço por nós mesmo).
Estudos em psicologia do desenvolvimento mostram que pistas e informações oferecidas por outras pessoas são o alicerce para as ideias que formarão os autoconceitos na criança. Nesse contexto, são de especial importância os adultos mais próximos (pais, avós, professores) e também seus pares (ou seja, colegas de turma e de bairro de idade próxima e que fazem parte do mesmo grupo social). É a partir dessa interação com os outros que a criança vai construir sua própria identidade.
Existe, portanto, a possibilidade de Miguel ter sido advertido por um colega que ninguém queria brincar com ele. Talvez Miguel tenha ouvido a conversa de adultos observando o fato de que nenhum colega queria brincar com ele porque não gostavam dele. Existe ainda a possibilidade de Miguel ter visto alguém dizer aquelas palavras e, tendo ele vivido uma situação de rejeição social, concluiu que aquela frases faria sentido também pra si.
Independente da causa, a origem é sempre de fora, no contato com o outro, e depois internalizada. O remédio parece fácil. Podemos informar Miguel com mensagens contrárias às crenças negativa, mostrando que tem gente que gosta dele, que ele é amado e muitos querem estar com ele.
Mas essa assistência não resolveria “o mal pela raiz” se Miguel não se sentisse realmente valorizado por pessoas importantes a sua volta, e isso inclui não só os adultos que tentariam remediar o problema, mas também os pares. Se pensamos na possibilidade de Miguel ter ouvido frases negativas de um ou mais colegas, da escola ou do bairro por exemplo, então precisamos alcançar também os colegas para produzirmos mudanças efetivas na imagem que Miguel tem de si mesmo.
E se você é um pai ou mãe que se preocupou com a cena descrita logo no início deste texto, tenho um questionamento para você: já pensou que pode ser o seu filho quem fala essas coisas para o Miguel ou para outros Miguéis espalhados pelo Brasil? Muitas vezes ficamos preocupados se nossos filhos estão sofrendo bullying, mas você já parou para pensar se é o seu filho quem faz o bullying? Se é seu filho que não entende as limitações de outras crianças e as exclui do grupo de colegas?
Precisamos responsabilizar as pessoas pelo que elas fazem com os outros. Crianças podem ser cruéis umas com as outras, agindo de forma agressiva verbal ou fisicamente. É, portanto, nosso dever não esperar que Miguel se “cure” com força de vontade e muito pensamento positivo, mas agindo para que nossos filhos façam parte de um ambiente social com mais empatia onde todas as crianças possam realmente se sentir valorizadas e possam também dizer a si mesmas: “Miguel, muita gente se importa com você!”