Muitas pesquisas têm mostrado que quando questionadas, as
crianças comumente relatam uma autoimagem altamente
positiva. Elas se enxergam como boas, legais e competentes no que fazem.
Entretanto, as pesquisas tem mostrado também que na maioria das vezes falta
sinceridade nesses relatos: elas podem relatar autoconceitos positivos apenas porque se sentem pressionadas interna ou externamente
a fazer isso.
Embora seja desejável que as crianças pensem bem de si mesmas,
o problema é que as autoconcepções positivas muitas vezes são exageradas e inautênticas e podem
sinalizar que as crianças se sentem pressionadas a retratar uma imagem
idealizada de si mesmas ou que tenham dificuldade em aceitar suas falhas ou
imperfeições.
Saber reconhecer e aceitar nossas características positivas
e também nossas características negativas faz parte da habilidade
socioemocional de autoconhecimento,
e essa habilidade é fundamental para melhor orientarmos nosso comportamento, valorizando
o que há de bom em nós e buscando corrigir ou superar nossas falhas e administrando
da melhor forma possível as consequências de nossas imperfeições.
Autoconceitos ao longo da infância
Entre 2 e 4 anos, as crianças elaboram concepções
rudimentares sobre suas características, preferências e habilidades. Esses
autoconceitos são, em parte, produto da apreciação de adultos sobre ela própria.
Com a maturação cognitiva, esses autoconceitos se tornam mais elaborados ao
longo da infância. As primeiras autoconcepções, até cerca de 5 ou 6 anos, são
marcadas por um viés imaginário de positividade, com expectativas irreais ("viverei
em um grande palácio") ou superestimadas ("sou o melhor desenhista de
toda a escola"). Esses autoconceitos não refletem necessariamente
tentativas estratégicas de causar impressões positivas em outras pessoas; ao
contrário, são resultados das limitações sócio-cognitivas que caracterizam a
primeira infância. Crianças pequenas têm dificuldade em distinguir quem elas
gostariam de ser (o "eu
idealizado") de quem elas realmente são.
A partir dos 7 ou 8 anos, as crianças percebem que eles
não são a pessoa que gostariam de ser, e elas conseguem incorporar comparações
interpessoais e as opiniões dos outros em suas autoconcepções. Além disso, elas
aprendem que podem possuir atributos positivos e negativos simultaneamente — "Eu
geralmente estou alegre, mas às vezes fico mal-humorado".
Como esses desenvolvimentos influenciam a autoconcepção
das crianças? Poderíamos esperar que, com essas capacidades adquiridas, as
crianças relatassem autoconceitos mais equilibrados e menos positivos,
incluindo perfeições e imperfeições, tanto talentos como incapacidades. Mas não
é isso o que se vê! Pesquisas com crianças e adolescentes do Ensino
Fundamental têm mostrado que o autoconceito permanece predominantemente positivo
nessa idade.
Isso acontece porque na segunda metade da infância, as
crianças se tornam mais preocupadas com a maneira com que elas são vistas pelos
outros, e em como elas podem criar imagens mais apreciativas de si mesmas. Elas
internalizam valores e regras sociais e expectativas dos outros em relação a elas
que servirão como "autoguias" —
padrões implícitos aos quais elas tentam aderir. Para evitar ser rejeitada,
desprezada ou punida, a criança apresenta autoconceitos favoráveis para
proteger a si mesma.
As crianças aprendem também que é socialmente desejável e
valioso relatar autoconcepções favoráveis: as crianças são frequentemente
expostas a normas sociais que transmitem que é ideal para elas pensarem bem de
si mesmas. Essas normas são transmitidas através dos meios de comunicação de
massa, enfatizando a importância de ter altas aspirações e de ter
autoconfiança, dos esforços dos pais para ajudar as crianças a pensarem bem de
si mesmas e das práticas educacionais em escolas que procuram promover autoconcepções
favoráveis. Se as crianças procuram aderir às normas sociais dominantes, elas
podem ser tentadas a se perceberem e a se descreverem tão positivamente quanto
possível.
Crianças também relatam autoconceitos favoráveis não só para
aderir a normas sociais, mas também para se sentirem mais confortáveis consigo
mesmas: pensar bem sobre si mesma é uma motivação interna.
Isso tudo levanta a seguinte questão: até que ponto a
autoimagem que as crianças relatam refletem suas verdadeiras autoconcepções?
Será que elas realmente só percebem os pontos positivos ou será que
elas reconhecem seus pontos negativos, mas não os manifestam publicamente?
Como ser mais honesta sobre si mesma
Para responder a pergunta acima, pesquisadores1
criaram um ambiente onde a autoimagem das crianças era avaliada dentro de um
contexto onde elas eram encorajadas a serem mais honestas nos relatos de
autoconceitos. Eles testaram crianças de 9 a 12 anos usando um falso detector de mentira2.
No experimento, um falso sensor foi colocado no dedo da criança e conectado ao
computador. O pesquisador dizia à criança que um programa no computador iria
monitorar se suas respostas seriam ou não honestas. Com esse
"incentivo" para que respondessem de forma honesta, as crianças
relataram muito mais autoconceitos negativos (por exemplo, admitindo ser “preguiçosa”,
“zangada”, “agressiva” ou “desobediente”).
Esse achado permite que a gente reconheça que as crianças
de fato percebem suas características negativas, mas por motivações internas e
externas (valores e normas sociais), elas tendem a omitir suas características negativas
e relatar apenas as que consideram positivas. Isso reforça a crença popular de
que as pessoas são muito gentis consigo mesmas e muito cegas para suas próprias
falhas. As pesquisas mostram que, pelo menos na infância, essa cegueira é mais intencional
do que factual, e que as crianças podem ser mais honestas quando motivadas para
agirem assim.
O problema das autoconcepções exageradas e inautênticas é
que, além de sinalizarem que as crianças se sentem pressionadas a retratar uma
imagem idealizada de si mesmas ou que tenham dificuldade em aceitar suas falhas
ou imperfeições, elas também estão relacionadas à maior resistência de mudança:
uma vez que as crianças não admitem ou aceitam suas características negativas, elas estão
menos encorajadas a se engajarem em atividades para superarar suas
dificuldades.
Obviamente, nenhum detector de mentiras será usado nas
escolas ou clínicas de psicologia, mas as crianças podem ser motivadas a serem
mais honestas quando o adulto cria um contexto onde a criança entende que...
✓ todo mundo
tem características positivas e características que consideramos negativas;
✓ está tudo bem
falarmos sobre nossas características negativas;
✓ nosso
papel como educadores não é julgar ou
punir a criança, mas sim ajudá-la a superar ou lidar melhor com seus
problemas.
Para
saber mais:
[1] THOMAES e
BRUMMELMAN. Why Most Children Think Well
of Themselves. Child Development, 0, 00, 1–12, 2017.
[2] Não faça isso em
casa! Esse experimento foi aprovado por conselho de ética e seguiu todas as
orientações para não causar prejuízo de qualquer tipo para as crianças. As
crianças podiam recusar participar do experimento. Segundo relato dos pesquisadores,
uma das crianças se recusou, e, dentre as que participaram, a maioria achou
"divertida" a atividade.