1. O que é Tomada de Perspectiva?
Tomada de perspectiva é a habilidade de um indivíduo entender perspectivas diferentes de sua própria. Popularmente, pode ser referida como a habilidade de se “colocar no lugar do outro”, ou seja, é a habilidade de ver o mundo (incluindo a si próprio) sob a perspectiva de outra pessoa. Tal habilidade interpessoal é essencial no desenvolvimento sócio-cognitivo, pois impacta na maneira como as pessoas se compreendem e interagem umas com as outras.
A tomada
de perspectiva não é simplesmente entender que outros pensam e agem diferentes
de nós, mas sim um esforço em entender “o porquê” de outras pessoas pensarem e
agirem diferente.
O estudo da função da tomada de perspectiva no desenvolvimento do autoconhecimento e nas
interações interpessoais serviu de ponto de partida para muitos esforços científicos
e filosóficos para explicar o comportamento humano.
Segundo o psicólogo social George H. Mead, um fator central no
desenvolvimento sócio-cognitivo é a capacidade do indivíduo de assumir a
perspectiva de outra pessoa, uma vez que essa perspectiva tanto informa a
compreensão de si próprio (o entendimento do próprio eu) assim como influencia
a interação interpessoal (como agir em relação a outras pessoas).
A preocupação dos psicólogos com essa
habilidade reflete-se no pressuposto de que a tomada de perspectiva é um constructo que está na base de muitas
áreas de pesquisa, incluindo interação
interpessoal e habilidades sociais, agressão,
empatia, raciocínio moral, preconceito, resiliência, teorias do
desenvolvimento cognitivo e teorias
do self.
A tomada
de perspectiva é um evento multidimensional, que ocorre tendo como base as diferenças
individuais (inteligência, personalidade etc.), experiências de vida e
variáveis contextuais.
A tomada
de perspectiva também é habilidade essencial no desenvolvimento de competências
sócio-emocionais.
Além de diferenciar seu próprio ponto de
vista dos pontos de vista de outras pessoas, a tomada de perspectiva exige habilidades de coordenar (alternar,
comparar, balancear e negociar) perspectivas, considerando expectativas, intenções,
desejos, crenças, valores e atributos pessoais, situações do cotexto,
sentimentos e potenciais reações de outras pessoas.
É, portanto, uma habilidade complexa, e, muito
embora crianças de 3 ou 4 anos já sejam capazes de reconhecer que outras
pessoas tem perspectivas diferentes da sua, a coordenação da perspectiva social
só emerge por volta dos 6 ou 7 anos de idade.
2. Os 5 estágios de Robert Selman
Uma grande influência nas pesquisas sobre
tomada de perspectiva é o modelo teórico proposto pelo psicólogo Robert Selman. Esse modelo foi
inicialmente desenvolvido a partir da teoria do desenvolvimento moral do
psicólogo Lawrence Kohlberg. Em seguida, o autor juntou a teoria de G. H. Mead
(tomada de perspectiva como processo fundamental no desenvolvimento
sócio-cognitivo) com a teoria de estágios de Jean Piaget sobre o
desenvolvimento cognitivo.
Selman define a coordenação da perspectiva
social como "a capacidade de se diferenciar e integrar o eu (self) com pontos de vista dos outros
através da compreensão da relação entre os pensamentos, sentimentos e desejos
de cada pessoa".
Na década de 1970, Selman apresentou um
modelo onde é descrita uma sequência de 5
estágios de desenvolvimento da tomada e coordenação de perspectiva. Os
estágios, ou níveis, de Selman começam por volta da idade de 4 anos e avançam progressivamente
até a adolescência.
No primeiro estágio (nível 0: indiferenciado
e tomada de perspectiva egocêntrica), a criança é capaz de distinguir entre o
eu e os outros, mas é incapaz de distinguir entre perspectivas. A perspectiva
da própria criança predomina como uma visão de mundo única.
No segundo estágio (nível 1:
sócio-informacional, diferenciado e tomada de perspectiva subjetiva), a criança
percebe que os outros são sujeitos com perspectivas próprias. Além disso, percebe
que essas perspectivas são baseadas em informações que não são privadas e,
portanto, podem diferir de sua própria perspectiva —
ou seja, duas pessoas podem ter diferentes perspectivas em relação a uma mesma
informação (um objeto no ambiente, por exemplo).
O terceiro estágio (nível 2: auto-reflexivo,
segunda pessoa, tomada de perspectiva recíproca) é marcado pela percepção de
que outras pessoas também interpretam a nós como sujeitos, assim como nós
interpretamos elas como sujeitos. O entendimento de que os outros tem
perspectivas sobre nós possibilita que a criança se torne auto-reflexiva por
tomar a perspectiva dos outros sobre ela. Ou seja, é através dos outros que a
criança se torna um objeto de reflexão para si própria. A capacidade de assumir
uma perspectiva de segunda pessoa emerge com a necessidade de reciprocidade nos
relacionamentos.
No quarto estágio (nível 3: terceira-pessoa,
tomada de perspectiva coordenada e mútua), o entendimento das crianças da
tomada de perspectiva mútua envolvido em qualquer situação social permite que,
progressivamente, a criança se afaste, num sentido abstrato, de tais situações
e adote uma perspectiva em terceira pessoa sobre as relações interpessoais.
No último estágio (nível 4: tomada de
perspectiva sócio-simbólica e baseada no sistema de valores convencionais), o
reconhecimento do adolescente de que a tomada de perspectiva mútua é sempre
incompleta dadas as complexidades da vida psicológica e, portanto, propensa a
falhas e mal-entendidos, dá início a uma apreciação renovada das convenções
sociais como forma de auxiliar e apoiar relações sociais eficazes. É nessa fase
que os indivíduos entendem que sua perspectiva pode ser influenciada por
sistemas de valores sociais.
Nível
0
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Egocentrismo,
Indiferenciação
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A
criança interage com os outros como indivíduos distintos, mas é incapaz de
diferenciar perspectivas. Suas ações sociais são orientadas por sua própria
perspectiva. Por exemplo, apontar ou mostrar objetos para alguém pelo
telefone, como se o outro estivesse vendo.
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Nível
1
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Diferenciação
subjetiva eu/ outro
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A
criança consegue diferenciar sua perspectiva da perspectiva de outros, mas
ainda tem dificuldade em coordenar (estabelecer relações) entre essas
perspectivas. Não reconhece, por exemplo, que a perspectiva de alguém pode
ser influenciada por suas experiências. Por exemplo: criança insiste e tenta
convencer outras crianças de que sua maneira de brincar é a correta e a
maneira das outras está errada.
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Nível
2
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Segunda
pessoa, reciprocidade,
auto-reflexão
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A
criança interage com os outros intersubjetivamente, entendendo eles como
indivíduos que também tem perspectivas psicológicas sobre si mesmos e sobre
os outros. A criança apresenta negociações e coordenações que envolvem as reações
dos amigos e a compreensão de como ela é considerada por eles (“como o outro
me vê?”).
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Nível
3
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Terceira
pessoa, coordenação mútua
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A
criança pode agora diferenciar sua própria perspectiva do ponto de vista
provável de outras pessoas do grupo. Ela coordena suas próprias orientações
de ação e as orientações dos outros dentro de uma perspectiva de terceira
pessoa, considerando simultaneamente sua visão sobre os outros e a visão dos
outros sobre si.
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Nível
4
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Integração
com sistemas de valores sociais
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As
interações do adolescente com os outros ocorrem dentro de uma rede mais ampla
de práticas sociais relevantes, valores institucionalizados e compromissos
ideológicos. Posicionando sua própria auto-compreensão em relação à de outros
dentro desta rede social maior, ele começa a consolidar sua própria
identidade pessoal. Por exemplo, reconhecer outras ideologias alternativas,
mas, no entanto, comprometer-se com um determinado conjunto de princípios ou
valores para orientar a própria vida.
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Além dos estágios propostos por Selman,
outros autores propuseram fases de tomada de perspectiva mais amplas e
elaboradas, a partir da consideração de um raciocínio meta-reflexivo com base
na rede de valores e problemas socialmente relevantes dentro de uma cultura ou
sociedade. Esses estágios estariam relacionados a compromissos ideológicos
particulares e perspectivas sociais, a fim de produzir relações que promovam
amplos níveis de construção de consenso e resolução de problemas de um grupo, da
comunidade local, de uma organização ou de todo um grupo social —
por exemplo: perspectivas em relação a questões raciais, questões de gênero,
questões de migração etc.
3. Por que educadores deveriam se preocupar
A crescente preocupação com o desenvolvimento
sócio-emocional das crianças nas escolas inclui a necessidade de desenvolver
nelas habilidades como empatia e altruísmo a fim de criarmos um ambiente social
mais seguro e saudável.
Um primeiro pré-requisito para o desenvolvimento
dessas habilidades é a capacidade da tomada de perspectiva. Antes que possamos
realmente ajudar o outro, devemos primeiro ser capazes de nos colocarmos no
lugar dele e ver o mundo a partir de seu ponto de vista. E quanto mais cedo
pudermos construir a ideia de "pensar sobre os outros", mais natural
ela se torna para as crianças e jovens.
Imagine que há um conflito no pátio da escola
durante o recreio. Miguel e seus amigos estão jogando futebol, mas depois de
alguns minutos, eles se distraem curiosos com uma pipa que quase cai dentro da
escola.
A bola de futebol fica de lado, e ninguém
está brincando com ela. Então Gustavo corre e começa a chutá-la. Miguel fica bravo:
"Essa é a nossa bola! Estávamos jogando com ela!”. Gustavo refuta: "ninguém
estava brincando com ela. Ela estava ali, parada!”
Este é um conflito bastante comum, do tipo
que surge todos os dias com as crianças. É também o tipo de conflito que pode rapidamente
se tornar mais complicado: Miguel e Gustavo podem começar a trocar socos e
pontapés. Para resolver o problema, Miguel e Gustavo têm que praticar a tomada
de perspectiva.
Miguel precisa pensar sobre a situação da perspectiva
de Gustavo. Gustavo viu uma bola de futebol abandonada no canto. Ele notou que
por vários minutos, ninguém estava brincando com ela. Ele imaginou que poderia
usá-la já que estava abandonada.
Gustavo precisa pensar sobre por que sua
atitude deixou Miguel tão chateado. Da perspectiva de Miguel, ele e seus amigos
estavam apenas fazendo uma pausa temporária. Eles não haviam realmente parado
de jogar futebol. A qualquer momento eles iriam retornar ao jogo.
Uma vez que ambos podem entender como suas ações
afetaram o outro, podem alcançar uma resolução com calma. Miguel poderia
convidar Gustavo para jogar futebol com seus amigos, ou Gustavo poderia
perguntar "vocês já terminaram o jogo?" antes de tomar a bola.
A tomada de perspectiva é importante nestes
pequenos conflitos e muito, muito mais importante nos maiores conflitos que
aparecem na vida. Precisamos da tomada de perspectiva para lidar com todos os
relacionamentos interpessoais que vivenciamos ao longo da vida: amizades,
relacionamentos românticos, relações de chefe/ empregado, aluno/ professor, pai/
filho e outras.
Para saber mais:
MARTIN, SOKOL e ELFERS. Taking and Coordinating Perspectives: From Prereflective Interactivity,
through Reflective Intersubjectivity, to Metareflective Sociality. Human
Development, 2008.
Selman, Robert L. The growth of interpersonal understanding: Developmental and clinical
analyses. New York: Academic Press, 1980.
Selman, Robert L. The promotion of social awareness: Powerful lessons from the
partnership of developmental theory and classroom practice. New York:
Russell Sage Foundation, 2003.
UNDERWOOD e MOORE. Perspective-taking and altruism. Psychological Bulletin, 1982.
BARNETT e THOMPSON. The Role of Perspective Taking and Empathy in Children's
Machiavellianism, Prosocial Behavior, and Motive for Helping. The Journal
of Genetic Psychology, 1985.
VESCIO, SECHRIST e PAOLUCCI. Perspective taking and prejudice reduction:
the mediational role of empathy arousal and situational attributions.
European Journal of Social Psychology, 2003.
FEITOSA et al. A tomada de perspectiva social: uma análise qualitativa com estudantes
paraibanos. Psicologia Revista. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e
da Saúde, 2016.