Nós, adultos e educadores,
nem sempre estamos de fato abertos a ouvir nossas crianças, e isso, como mostra o pequeno Samuel, pode ser um grande erro. Samuel tem 10 anos de idade, estuda no 5º ano e deixou uma mensagem contando sobre uma coisa muito chata que aconteceu na escola. Leia a mensagem abaixo!
Hoje o dia na escola não
foi legal. Não foi mesmo.
E eu ainda tô com raiva,
muita raiva. Mais cedo na escola, também senti medo. Uma mistura de raiva e
medo quando fui levado para a direção.
Quem me levou pra lá foi
tia Kátia.
Tia Kátia toma conta da escola
toda, sabe? Ė como aqueles guardinhas que ficam nas ruas lá do Centro, só que
ela não usa uniforme e nem tem cara de má. Tem é cara de irmã mais velha, isso
sim. Eu não tenho irmã, mas o Breno tem, sei como é: parece boazinha, mas gosta
de dedurar o irmão mais novo para a mãe.
Quando algum aluno faz
bagunça, Tia Kátia pega e leva pra direção. Não sei exatamente pra onde...
Quero dizer, não sabia até hoje, agora eu sei. Pensei que tia Kátia levava a
gente pra sala da diretora, Dona Graça, que de tanto botar medo na gente,
ganhou um apelido carinhoso, Dona Dis... deixa pra lá! Não foi pra lá que ela levou a gente.
Outro dia, o Carlos e o
Henrique me contaram que quando a gente é levado pra direção, a tia anota num
caderno com várias fichas, e a gente tem que assinar no papel. Chamam de
ocorrência. Ficha de ocorrência. Fichinha de ocorrência. Ou só fichinha. Daí chamam seu pais na escola. Três
fichinhas e você pode até ser expulso. Foi o que eles me contaram. Não sei se é
verdade. Acreditei. Fiquei com medo das fichinhas.
Sempre fui bom aluno. Sou
um bom aluno. Não falto aula de bobeira. Sempre bem comportado. Boas notas.
Nunca fiquei em recuperação, nem fui reprovado. Não havia motivos para eu ter
fichinhas, nem sequer uma. O que minha mãe iria pensar se fosse chamada na
escola? Minha mãe ficaria brava só de ter de sair do trabalho pra ir à escola.
Por isso fiquei com medo hoje quando tia Kátia me levou.
Tia Kátia me apanhou
logo que acabou o recreio. Deixa eu explicar: quando o sinal toca avisando que
é hora de voltar pra sala, todos os alunos se juntam no meio do pátio. Cada
turma tem sua fila, em ordem crescente de tamanho. Na nossa, o Formiga, menor,
fica lá na frente e a Roberta lá atrás. Então a professora aparece e puxa a
fila de volta à sala de aula.
A verdade é que o sinal
toca duas vezes. Na primeira vez é aquela correria. Todo mundo, cada aluno espalhado
pelo pátio, cantina, banheiro, quadra... todos correm para formar as filas. Na
segunda vez, todos já têm que estar lá na fila, prontinhos para voltar à sala
de aula.
Menos de um minuto passa
entre um toque e outro.
Eu sempre estava lá na
fila, na hora certa. Fiz isso por mais de quatro anos, sem problemas.
Hoje, pela primeira vez,
não cheguei a tempo.
Faltavam poucos metros
quando o sinal tocou pela segunda vez. Ouvi uma voz atrás de mim, um pouco
longe:
— Ei! Ou,
ou, menino. Pode vir aqui — era tia Kátia — vem,
anda!
— Mas... estou
indo para a fila — falei, meio engasgado, tentando me explicar.
—
Engraçadinho! — ela respondeu.
Olhei para as filas que
já retornavam para a sala de aula. Tia Kátia me alcançou e me empurrou pelos
ombros para junto de outros dois meninos pequenos que ela havia juntado num
canto, enquanto buscava um quarto menino do outro lado do pátio.
Juntos, fomos levados
para a direção. Todos calados. Menos um. Um menino do 4º ano reclamava,
levantava os braços, tentava se justificar:
— Foi ele
que começou. Eu nem...
— Pode
parar Douglas — interrompeu tia Kátia — eu vi você bater nele.
— Mas
tia...
— Para!
Não adianta.
— Pô tia!
Cê nem viu nada.
— Que
isso menino? — todos pararam — Não me
responde assim, viu? Tá me escutando? Me respeita!
Continuamos andando.
Parecia que já se conheciam. Ele nem parecia estar com medo, respondendo
daquele jeito. Douglas... Será que tia Kátia sabe meu nome? — pensei — agora
a pouco ela me chamou assim: "ei, ei, ou, ou, menino". Será que ela se lembra de
mim de quando passo por ela no portão todo dia na entrada? Acho que não. Ela
nem dá bom dia quando a gente chega na escola. Fica lá encostada com o telefone na mão. Mas ela sabe o nome desse... Douglas. Duvido que ela saiba meu nome.
Ela quer saber meu nome? Acho que não.
Passamos por três ou
quatro salas pelo corredor. Paramos em frente uma porta. Não era a sala da Dona
Graça.
Tia Kátia empurrou a
porta que estava encostada. Entramos e ficamos colados na parede de frente pra
uma mulher gorda e de óculos que estava sentada à mesa, com papeis e caneta nas
mãos. Nunca vi antes. Nunquinha.
Tia Kátia falou com ela:
— Estavam
aprontando. Não foram pra fila.
“Aprontando? Eu? Não mesmo! Houve algum engano” — falei comigo mesmo sem abrir a boca.
— E esse aqui — continuou olhando para o Douglas — estava brigando de novo.
A mulher não disse nada.
Inclinou a cabeça pra baixo, olhando por cima dos óculos. Passou o olho por
todo mundo. Pegou uns papeis que estavam debaixo de outros papeis.
Serão as fichinhas? — pensei.
Tia Kátia saiu da sala.
A mulher escreveu alguma
coisa no papel. Olhou pra gente. Escreveu mais. Não falou nada.
Ficamos quietos, de
cabeça abaixada. Eu estava com medo... já disse isso, né? Queria entender o que
estava acontecendo. Eu queria falar, perguntar. Acho que os outros também.
Melhor não arriscar.
— Assinem
aqui! — disse a mulher — todo
mundo, assina.
Ficamos parados, olhando
um para o outro. Assinar o quê? Por quê? O que é isso? É essa a tal da
fichinha?
— Vamos,
vamos. Não temos o dia todo — ela insistiu.
Douglas tentou se
justificar mais uma vez:
— Eu nem
fiz nada tia.
Não adiantou.
— Vem
Douglas. Você primeiro. Escreve seu nome aqui — ordenou ela.
— Ah,
não! — Douglas foi, reclamando, forçando uma cara de choro.
Eu, ao contrário,
forçava para não chorar, embora estivesse com olhos cheios de lágrima.
Pensava: minutos atrás, dia
normal, corria no pátio, jogava bola, brincava com meus colegas... um dia como
qualquer outro. Agora estou aqui. Nem sei por que estou aqui. Claro, sim, eu
sei. Eu estava fora da fila. Mas eu não fiz nada de errado, eu só...
— Você
agora — disse ela olhando pra mim.
Fui.
Em cima, no papel, a
data de hoje, 07 de abril. Depois um pequeno texto que não deu tempo pra ler — “anda menino, não é contrato, assina logo!” — mas lembro de ter visto a palavra indisciplina. Coloquei meu nome debaixo do
de Douglas.
— Coloca
sua turma também — pediu a mulher.
Voltei pra parede. Os
outros dois também assinaram. Nem fiquei sabendo o nome deles. Não falaram nada
também, cada um foi e voltou mudo. A gente só obedecia ao que ela mandava.
— Pronto.
Podem ir — disse ela.
Ficamos parados. Menos
Douglas, é claro, que já empurrava a porta para sair da sala.
— Vão,
vão. Vão para a sala de aula. Nada de bagunça. E não aprontem mais, ouviram?
Então é isso? — pensei na hora — o que
acontece agora? Era esse papel a fichinha? Vão ligar pra minha mãe falando que
eu fiz alguma bagunça? Quem era aquela mulher? Agora é só voltar para sala de
aula? Não entendi nada.
Mas a direção não era afinal
tão assustadora quanto eu imaginava. Para falar a verdade, nem estava mais
sentindo medo. Eu estava agora é com raiva.
Muita raiva.
O que eu
fiz de errado? Sim, eu estava fora da fila. Mas elas sabiam o porquê de eu
estar fora da fila? Não, não sabiam. Com certeza não sabiam. Nem queriam saber.
Elas nem me perguntaram. Nem tia Kátia nem a... aquela mulher. Era fácil. Era
só terem perguntado “ei, Samuel, por que é que você estava fora da fila?”, e eu
responderia. Simples. Mas, não, não perguntaram. Agora meu nome está lá
registrado no papel como... “indisciplina”. Meu nome na fichinha. Indisciplina?
Eu? E eu nem sei o que aquela mulher escreveu sobre o que aconteceu.
Que raiva! Não me
perguntaram, nem me deixaram contar. Sim, eu sei que nem tentei falar. Eu
estava assustado, com medo. Pra falar a verdade, eu tentei falar sim quando tia
Kátia me parou. E ela respondeu: “engraçadinho”. Engraçadinho? O que ela quis
dizer? Quando o Douglas tentou falar alguma coisa também, elas nem deixaram.
Não sei o que ele fez. Mas nem deixaram ele contar o que aconteceu. Se eu
tentasse explicar alguma coisa, elas me mandariam calar a boca. Com certeza
mandariam. E eu iria passar vergonha e ficar com mais raiva ainda.
E quer saber o que
aconteceu? Eu conto. Preciso contar para alguém.
Foi assim que aconteceu:
Assim que desci da sala
de aula para o pátio no recreio, passei pela sala de brinquedos. Peguei a bola.
Foi sorte eu ter encontrado a bola de futebol lá. Normalmente, não costumo
passar pela sala de brinquedos, e quando passo, já não tem mais nada. A bola é
sempre o primeiro brinquedo a ser levado. Para falar a verdade, foi a primeira
vez que consigo pegar a bola.
Peguei a bola e fui para
o pátio. Brincávamos eu, Henrique, Zé
Carlos, Neno, Kauan, o Caco da Quarenta e outros meninos. Revezávamos quando um
time perdia, aguardando a próxima rodada.
Fiquei cansado. Parei.
Estava com fome. Os meninos (cada vez chegava mais) continuariam lá com a
bola. Passei muito tempo jogando e agora tinha poucos minutos para lanchar. Fui
correndo no refeitório. O suco havia acabado, mas peguei uns biscoitos com manteiga que tinham sobrado.
Comi correndo.
Desnecessário. Ainda faltavam alguns minutos para o recreio acabar. Encontrei o
Pereira na escada com telefone na mão, jogando Clash Royale. Sentei do lado dele e fiquei lá, vendo ele passar pela arena quatro.
Quando o sinal tocou,
corremos para a fila, como sempre fizemos. E eu já estava lá, chegando na fila, quando, de longe, vi que os meninos haviam deixado a bola pra trás.
Ninguém foi
guardar a bola na sala de brinquedos.
Veja só: era a primeira
vez que eu havia pegado a bola na sala de brinquedos. O que fazer com a bola
depois, quando acaba o recreio? Tenho que devolvê-la onde peguei? Digo, sou eu,
eu que peguei, que tenho que devolver? Por que os meninos que jogaram por
último não a guardaram quando o sinal tocou?
Eu podia ter deixado a bola lá, jogada no
canto. Poderia ter sido qualquer aluno. Nenhuma tia, nem ninguém, viu quando eu peguei a bola na sala de brinquedos. Não tenho culpa. Sou eu que tenho que guardá-la?
Eu tinha minhas dúvidas,
sim. Mas sendo eu que peguei, tinha minhas responsabilidades também. Aprendi
com minha mãe a guardar as coisas no lugar.
Não fui pra fila. Fiz o que achei ser correto. Corri para pegar
a bola. Corri de volta para o outro lado, em direção à sala de brinquedos.
Deixei a bola exatamente onde eu havia encontrado. Corri para a
fila... tarde demais. O sinal tocou. Tia Kátia me chamou —“ei, ou, ou, menino...” — e aí já contei o que aconteceu.
Pensei ter feito o
certo. Eu podia é ter ganhado um prêmio por bom comportamento, ajudando a manter a ordem e as coisas no lugar. Mas agora meu nome está lá na fichinha. Tia Kátia me chamou de “engraçadinho”
quando eu tentava voltar para a fila. “Indisciplina”, aquela mulher escreveu no papel. E nem me perguntaram o porquê de eu não estar na
fila, isso é que me deixou com raiva. Três segundos atrasado.
Desculpa a longa
mensagem. Falei aqui o que lá não me deixaram contar. Agora estou um pouquinho mais tranquilo.
Quando eu chegar na
escola amanhã cedo, passo pela tia Kátia no portão. Será que ela vai se lembrar
de mim?
Acho que não. Ela nem
sabe meu nome.
Essa é uma história de ficção. É a primeira vez que um conto é publicado aqui no portal PsicoEdu. A ideia é retratar situações vivenciadas pelas crianças na escola que sirvam de reflexão para a prática do educador. O que você achou dessa experiência? Que tipo de reflexão o texto deixa? Ele corresponde de fato ao que acontece nas escolas? Deixei sua opinião!
Atenção: esse texto foi escrito exclusivamente para o portal Psicologia para Educadores - PsicoEdu (www.psicoedu.com.br). Qualquer reprodução do texto sem autorização expressa do autor é proibida!